Do caos contratual ao compliance by design: como a inteligência artificial pode transformar licitações públicas em fluxos automatizados
Colunistas EXAME
Publicado em 12 de agosto de 2025 às 14h55.
Por Gustavo Maia e Wesley Vaz*
Imagine uma máquina mágica. Uma inteligência artificial com autonomia suficiente para não apenas verificar falhas em contratações públicas, mas construir, do zero, processos de compras públicas que já nasçam corretos. Uma IA que elabore o estudo técnico preliminar, redija o termo de referência, indique riscos jurídicos, valide preços e acompanhe a execução contratual, tudo segundo as normas da Lei 14.133 e as interpretações dos órgãos de controle.
Essa provocação, que antes pareceria ficção, hoje é uma possibilidade real. E por melhor que seja essa possibilidade nos obriga a enfrentar uma questão incômoda: a sociedade confiaria mais em uma contratação feita por um servidor humano sem a devida formação técnica ou por uma IA auditável com taxa mínima de erro?
É preciso reconhecer que a resposta possivelmente será “nenhum dos dois”. Por enquanto.
O problema atual das contratações públicas no Brasil não é de má-fé. É de estrutura. Em milhares de municípios, especialmente os de menor porte, o profissional responsável pela compra pública não tem formação técnica suficiente para entender a legislação, compreender as interpretações e, nem simplesmente, elaborar os documentos necessários. E, por isso, não raramente recorre à solução informal que, ainda que bem intencionada, multiplica os riscos de irregularidade: que a própria empresa interessada ajude a escrever o edital. O que deveria ser uma disputa transparente pode se transformar em um direcionamento disfarçado. E as empresas, por sua vez, sabem que, se não colaborarem, dificilmente conseguirão participar
do jogo.
O que se propõe aqui não é imaginar um cenário teórico, mas visualizar uma nova arquitetura: a contratação pública como um
fluxo automatizado, operado por uma IA agêntica — um tipo de inteligência artificial capaz de agir com autonomia, interpretar
regras, tomar decisões com base em normas, acórdãos, jurisprudência e dados públicos. Não apenas uma IA que responde a
comandos, mas que conduz o processo em si, alertando gestores sobre riscos, lacunas jurídicas e caminhos alternativos.
Essa IA pode ser comoditizada, ou seja, acessível, barata, disponível para qualquer órgão público, inclusive os pequenos municípios. Poderemos ter IAs especializadas por objeto independente do tamanho do desafio (por exemplo, contratar café!!), com conhecimento acumulado sobre a aquisição daquele objeto, licitações similares e, o mais importante, análise automática da conformidade com as normas.
Neste cenário, os custos das licitações tenderiam a cair, a taxa de erros diminuiria, e o gestor público deixaria de ser um “fazedor de tudo” para se tornar um orquestrador de agentes — um curador das decisões automatizadas, responsável por validar, adaptar e dar a palavra final. Nesse cenário, a reputação do profissional público continua sendo um ativo essencial. Mas a função dele muda: ele já não precisa ser especialista em todos os detalhes da legislação, e sim alguém capaz de navegar entre múltiplas IAs especialistas, com conhecimento suficiente para conectar os problemas da instituição com as soluções a serem contratadas.
A partir disso é possível tornar concreta a ideia de “compliance by design”. O controle público não existe somente paraencontrar erros — existe principalmente para evitar que eles aconteçam.
Com algoritmos bem treinados e com respostas validadas por especialistas, é possível construir fluxos que já nascem com a conformidade incorporada. E não sejamos simplistas: os espaços de ambiguidade jurídica permanecem, é claro — a lei não é binária —, mas ao menos o gestor terá clareza dos riscos, com base em evidências e decisões anteriores.
Essa transformação também mudaria profundamente o mercado GovTech. Em vez de depender de editais altamente personalizados, muitas vezes moldados a partir de requisitos restritos a uma empresa específica, o mercado passaria a competir em torno da capacidade de atualizar e melhorar as IAs que operam os fluxos de contratação. Venceria não quem melhor entende os bastidores, mas quem oferece a IA mais eficiente, mais alinhada às normas, mais adaptável às novas jurisprudências.
É uma inversão completa de lógica: saímos da zona cinzenta da informalidade e da dificuldade crônica de operação das leis para um novo modelo em que os fluxos de contratação se tornam públicos, auditáveis e escaláveis.
A contratação pública é um problema muito complexo, com respostas sempre difíceis. Mas e se esse problema procedimental fosse resolvido em curto espaço de tempo? O que os agentes do Estado faria com essa resposta? Quais novos problemas passariam a receber atenção?
As respostas não serão simples, mesmo quando as dores de hoje estiverem resolvidas, pois outras surgirão. E, talvez, seria interessante exercitar uma dose de humildade e otimismo: admitir que já temos tecnologia para resolver parte significativa do caos atual — e que o maior risco, hoje, não é errar ao usar IA. É fingir que o sistema atual é melhor do que pode ser com a IA.
*Gustavo Maia é diretor executivo do Colab e membro do Conselho Global sobre GovTech e Infraestruturas Públicas Digitais
do Fórum Econômico Mundial.
*Wesley Vaz é professor na Fundação Dom Cabral, autor, palestrante e Secretário de Controle Externo de Governança.
Fonte: Exame